sexta-feira, 20 de junho de 2008

Foi assim que me contaram/A escola e o Passado

Num dia quente de Verão, estávamos eu e a minha avó paterna a conversar sentados na areia, protegidos do sol, quando ela entusiasmada me contou a história de um dia que lhe mudou a vida.
Nos anos 30, minha avó paterna, vivia com a sua família em Arnoso Santa Maria. Esta década, caracterizada por mudanças no país, foi também uma época de mudanças na sua vida. Na família, os costumes e princípios aristocratas ainda predominavam. A terra era a única fonte de subsistência, a indolência não era permitida e todos tinham de trabalhar, para que a família pudesse viver melhor.
O pior de tudo, para a minha avó, era aceitar o costume de somente os rapazes irem à escola. A família era numerosa (nove membros), sendo apenas dois rapazes, e só estes tinham direito a ir à escola. Enquanto os rapazes aprendiam a ler e a escrever, as raparigas faziam o seu trabalho doméstico: limpavam, cozinhavam, costuravam e também cultivavam os campos. O pai da minha avó, o senhor António, não deixava as raparigas irem à escola, mas os rapazes iam apesar de não se esforçarem muito nos deveres escolares, portanto a escolarização, nessa altura, era particularmente para os rapazes
Num dia solarengo de Primavera, com muito trabalho para fazer, a minha avó paterna, D. Isaura, levantou-se ao cantar do galo. O sol, ainda um pouco adormecido, lançava apenas uns tímidos raios sobre as encostas dos montes, já D. Isaura tinha saído à procura de lenha para o lume, a fim de cozer pão no forno. Os seus irmãos acordaram um pouco mais tarde e partiram para a escola.
Em Arnoso Santa Maria, só havia uma professora, que já dava aulas há muitos anos e, assim, já conhecia muitas famílias, incluindo a da minha avó. Com a vontade de que todos, pelo menos, soubessem ler e escrever, a professora mandou recado para o chefe da família. Nesta mensagem, a professora pedia ao Sr. António para deixar que as raparigas frequentassem também as aulas para aprenderem pelo menos a ler e a escrever.
Os rapazes chegaram a casa e deram o recado ao seu pai que andava atarefado no arranjo de um tanque, para armazenar a água, a fim de regar o milho no Verão. O pai, nem parou de trabalhar para ouvir o recado, murmurou que isso não lhes fazia bem e que elas não precisavam desses ensinamentos, ordenando que se despachassem para o vir ajudar. Ao chegarem a casa, comentaram com a minha avó o recado da professora, enquanto esta acendia o lume para cozer o pão saborosíssimo. Ela interrompeu o que estava a fazer e os seus olhos começaram a brilhar de entusiasmo, apesar de saber que seu pai não concordaria nem cederia àquele pedido.
Era o seu sonho - aprender a ler e a escrever – e, todos os dias, quando os seus irmãos chegavam da escola, ela apressava-se a acabar todas as suas lides e sentava-se com eles, perguntando-lhes o que eles tinham aprendido. Notava que eram um pouco desatentos porque lhe diziam muitas vezes que não se lembravam bem das lições. Minha avó ficava sempre triste, porque se lhe fosse dada a oportunidade de ir à escola, ela nunca se esqueceria de estudar e de tudo o que tinha aprendido nesse local tão desejado.
Minha avó continuou o que estava a fazer e, no almoço, nem falou. No fim deste, enquanto arrumavam a cozinha, conversando com a sua mãe, que se comovia com o facto de ela gostar da escola e não a frequentar, esta deu-lhe esperança e disse-lhe que tentaria convencer o seu pai. As suas irmãs, não ficaram tristes, achavam-se já velhas para ir à escola e queriam era casar.
Passada a tarde, a noite caiu e, aquando do jantar, estavam todos sentados à mesa, a sua mãe, calma e corajosamente, retomou o assunto e conseguiu que o Sr. António permitisse a ida à escola da minha avó. Aceitou, mas com uma condição - se ao fim de um ano ela não conseguisse sairia de imediato da escola. Os olhos da minha avó pareciam as duas estrelas mais brilhantes daquela noite. Estava tão contente que, com dois beijos de amor e gratidão, agradeceu aos seus pais.
No dia seguinte, a minha avó foi à escola com grande entusiasmo e com um nervoso miudinho, que se tornava maior à medida que se aproximava dos velhos e ferrugentos portões da entrada da escola. A professora ficou contentíssima e começou logo a ensinar-lhe várias letras, ficando surpreendida com a rapidez que aprendia e o esforço que demonstrava.
Diariamente, tinha que conciliar os trabalhos ordenados pela mãe e os propostos pela professora. Somente à noitinha tinha tempo para estudar. Já não havia luz e a vela acesa tornava o estudo mais lento e difícil, porém a dedicação tudo conquistava.
De manhã, acordava mais cedo que os seus irmãos, pois tinha de ir à lenha para a sua mãe acender o forno, deixar o pão que a mãe tinha cozido na venda da aldeia e, finalmente, ir para escola. Era uma luta diária contra o tempo, mas quando se sentava no banco duro e velho da escola, tudo parecia mudar e quase se revia numa personagem qualquer de um conto de encantar que a professora contava no fim da aula.
Minha avó andou durante um ano na escola e aprendeu a ler, a escrever e a contar. Ela queria muito continuar na escola, contudo não pôde pois a vida familiar complicou-se. O seu pai morreu e sua mãe ficou sozinha em casa. As suas irmãs tinham casado e ela tinha que ajudar nas tarefas domésticas como cozer o pão e cultivar os campos.
No seu último dia de aulas, guardava, no coração, o agradecimento àquela professora que, através de um simples recado, permitiu que, numa certa tarde, o seu grande desejo de ler e escrever se tornasse realidade e, deste modo, um dia ela pudesse ler aos seus filhos uma história de encantar.
E foi assim, na Póvoa de Varzim, que a tarde foi passando e a força do vento nos fez abandonar a praia e aperceber-me da grande história de vida da minha avó e da sua luta pessoal contra o analfabetismo que se vivia naquela época.

Emanuel Carvalho 9º A CAB

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